Por Laura Augusta
Existe um mito que cerceia a afetividade das mulheres, quando tocamos no assunto da violência de gênero e da construção das afetividades, que é a manutenção e permanência desse relacionamento, ou seja, quando mesmo sabendo dos riscos de aumento de intensidade de violência e de feminicídio, a decisão tomada pela mulher é a de permanência no seu relacionamento, seja por ‘x’ motivos. Ao senso comum, com poucas exceções, a mulher alimenta o comportamento misógino daquele agressor, logo, apanha porque gosta.
Porém, colocando a deixa á ciência que muito contribuiu através de anos sendo omissa, fomentando a desigualdade de gênero e a misoginia em diversas vertentes como o Direito, Psicologia, Serviço Social, Medicina e etc, quando observamos esses fenômenos de uma perspectiva sócio-histórica e interseccional, podemos perceber a emergência de alguns fatores que não podem ficar em silêncio.
Quando convido a reflexão por essa vertente, quero dizer que historicamente no nosso país que foi colônia de exploração de Portugal, teve suas riquezas extraídas para alimentar o império europeu, a mulher é sempre objetificada em seu espaço de adorno. Seja o adorno que embeleza a casa ou aquele que presta o serviço para que a casa continue embelezada. O lugar da mulher, socialmente representado, sempre foi de objeto. E até hoje, grande parte da população brasileira revive e vive re-vitimizada desse lugar social. Partindo aqui a segunda parte do convite, quando focalizo interseccionalmente, explicando que a maioria da população brasileira é negra e feminina.
Conjugando essas opressões e crescendo numa sociedade que alimenta a estrutura das mesmas através de estereótipos de masculinidades que promovem o fenômeno da violência, este que bebe de uma origem escravocrata, é muito complicado se olhar no espelho e enxergar-se vítima, com paradigmas como o da meritocracia e da democracia racial, tão fortalecidos, gritando que as mulheres, principalmente negras e pobres, precisam ser mais esforçadas e que todos somos iguais.
Quando afirmo este lugar de mulher negra pobre e periférica, não anulo as violência das outras mulheres. Afirmo estas e apresento os privilégios sociais que aprisionam a maioria da população brasileira em situação de vulnerabilidade. O que violência de Gênero tem a ver com concentração de renda, com pertencimento racial e sofrimentos difusos? Simples. Se temos em um país rico como o Brasil, onde os 5% mais ricos detêm 28% da renda total e da riqueza, sendo estes homens brancos, a representatividade econômica realiza sua exclusão de raça e gênero. Sendo assim direitos trabalhistas de igualdade, garantia de direitos adquiridos e eficácia das leis que protegem mulheres em profissões que são majoritariamente femininas ficam sempre no limbo do critério de quem irá exercer a justiça. Se ha maior concentração de renda nas maos de homens brancos e suas familias, sabemos que a desigualdade tem nome, sobrenome e endereço certo. E que na hierarquia das opressões, as que irão ficar desassistidas nessa história, desde sempre : As mulheres negras.
Essa desassistência que atravessa a diáspora e se estrutura em terras estranhas, se arrastando por anos em lacunas de lutos mal elaborados, de depressões não permitidas, de mudança de nome, de colonização e das negações que essa estrutura promove, as afetividades são construídas assim. Da negação e da necessidade. A necessidade primária pode ser a comida na mesa e a escola, a saúde, a segurança pública que é dever do estado,que não teve acesso. Porém, para além disso, está a infância construída nas referências do trabalho escravo, a rede de apoio de amigos e amigas, se perdendo aos poucos todos os dias pela violência policial e pelas outras diversas ações do plano genocida. Está na forma que as relações são construídas nesse cenário, a maternidade, as relações afetivas e as formas de educar os filhos. A maneira que demonstra-se afeto em família e até mesmo, o que seria família.
Cada passo dado em busca das respostas para esse fenômeno são feridas abertas que encontramos e que todos afirmam que elas existem e estão gravemente expostas, porém pouquíssimas pessoas,e instituições se debruçam a cuidá-las. Temos no Brasil, a cultura de prevenirmos de doenças epidêmicas porém não construímos hábitos de promoção de saúde. Temos leis que combatem a violência de gênero em sua instância física e no assassinato, Porém, falar sobre como chegamos aqui e construir caminhos para que o ciclo reordene seus passos para fora da violência é algo raro e que precisa ser pensado com urgência.
Esse texto, apesar de carregar em seu título uma prerrogativa de resposta, não responde esses fatos. Afinal, dentro desse contexto bizarro que fomos educados, muito difícil ( e cada mulher negra que combate contra a misoginia na luta antirracista sabe) sair ileso desse tiroteio de opressões. Os relacionamentos abusivos que se mantém por motivos inúmeros, podem ser como band-aids para úlceras. Não resolvem o problema, denunciam que a ferida é gigantesca, porém o processo de cuidado é sempre pautado no princípio bioético de autonomia. Porém é possível ter autonomia, diante de todo o contexto trazido nas linhas acima? Continuemos em luta.