Só 55% dos hospitais que ofereciam serviço de aborto legal no Brasil seguem atendendo na pandemia
A única forma de aborto legal é camisinha e pílula”, diz a atendente da maternidade do Hospital das Clínicas de Botucatu (SP), quando questionada se o hospital oferece o serviço de aborto legal. Antes dela, outra colega havia desligado o telefone ao ouvir a pergunta. Somente após a reportagem explicar sobre os casos previstos em lei é que a ligação foi transferida para uma enfermeira, que informou que o serviço estava funcionando.
No hospital Universitário Ebserh Polydoro Ernani, em Florianópolis (SC), ao ser perguntada sobre a oferta do serviço, uma funcionária respondeu em tom de deboche: “Jamais”. Após insistência da reportagem, ela encaminhou a ligação para a maternidade. A resposta: “Não é aborto legal, meu anjo, não existe isso aqui, depende do protocolo”.
A lei no Brasil garante que a interrupção da gestação é permitida para vítimas de violência sexual, casos de anencefalia do feto e quando há risco à vida da gestante. No entanto, o acesso a esse direito nem sempre é garantido. Por isso, checamos como está o atendimento durante a pandemia.
Os telefonemas fazem parte de um levantamento realizado pela Artigo 19, em parceria com a revista AzMina e a Gênero e Número, para identificar como está o serviço de aborto legal no Sistema Único de Saúde (SUS) durante a pandemia do novo coronavírus. Entre 27 de abril e 4 de maio deste ano, as organizações entraram em contato por telefone com os 76 hospitais que realizavam a interrupção legal de gravidez, identificados em 2019 pelo Mapa do Aborto Legal, da Artigo 19. Pouco mais da metade (55%) mantêm o serviço durante a pandemia de covid-19. E boa parte dos atendimentos evidenciam o desconhecimento de diversos funcionários da saúde sobre os casos de aborto previstos em lei.
O Hospital das Clínicas de Botucatu (SP) é uma das 42 unidades de saúde onde o serviço continua funcionando. Outros 17 hospitais suspenderam o serviço devido à pandemia ou afirmaram que não o realizavam mais. Além disso, três simplesmente não souberam informar se o procedimento estava disponível. Por fim, não foi possível entrar em contato com outras 14 unidades de saúde.
O posicionamento contrário dos profissionais de saúde quanto ao aborto legal também ficou claro em alguns casos. Na Maternidade Dona Evangelina Rosa, em Teresina (PI), após a reportagem repetir três vezes a pergunta sobre o serviço, aos gritos, a atendente disse que “não existia aborto legal no país” e desligou o telefone em seguida.
Na Policlínica e Maternidade Professor Barros Lima, em Recife (PE), o atendente apresentou diferentes justificativas para a falta de informação: primeiro disse que não sabia para onde direcionar as dúvidas sobre o acesso ao serviço, já que trabalhava há pouco tempo no hospital. Depois afirmou que o responsável pelo serviço não se encontrava.
Ano passado, o trabalho da Artigo 19 havia identificado 176 hospitais cadastrados para o serviço ou que fizeram o procedimento nos últimos dez anos. Mas verificou também que apenas 76 prestavam, de fato, o serviço. Estes foram novamente contatados para a realização desta reportagem.
“Sempre foi essa guerra. Um número grande de hospitais diz que oferece o serviço, mas, na verdade, ele não está disponível. Neste momento, a política e o próprio Ministério da Saúde têm deixado de trabalhar essa questão, devido à pressão sobre tudo que envolve interrupção da gestação. Este atendimento às mulheres já vinha piorando antes da pandemia, e agora os serviços estão se utilizando também dessa nova desculpa para dificultar o acesso”, destaca Marcos Augusto Bastos Dias, ginecologista e obstetra do Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira (IFF/Fiocruz).
Segundo Dias, existe despreparo e má vontade de dar visibilidade a um serviço que as maternidades muitas vezes fazem a contragosto: “Se considerarmos que a recepção da gestante vai do segurança, na porta da maternidade, ao diretor, pouca gente sabe efetivamente qual é o fluxo do atendimento e como deve ser o acolhimento da gestante, para que ela não precise contar a história na recepção, na sala de exame e novamente para a enfermeira”.
Para o ginecologista, a diminuição dos serviços de interrupção da gravidez em casos previstos na lei é uma questão grave. “A legislação no Brasil já é super restritiva. As mulheres enfrentam muitas dificuldades para conseguir a interrupção legal. Não é imaginável que, neste momento, os serviços se recusem a realizar os procedimentos de interrupção legal da gestação. O atendimento para realização do aborto legal é um serviço essencial”. Poucos dias após decretar a pandemia causada pelo novo coronavírus, a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomendou que o direito à contracepção fosse respeitado, “independentemente da epidemia da covid-19”.
Desertos de atendimento
Em 13 estados brasileiros e no Distrito Federal, não há qualquer serviço disponível de interrupção legal da gestação. No Pará, por exemplo, a usuária do SUS teria que se deslocar para Amazonas ou Tocantins para ser atendida. E nos estados onde há atendimento, ele se concentra majoritariamente nas capitais.
Com o número reduzido, cada hospital deve atender, em média, à demanda de 179 cidades do país. São Paulo é o estado com maior número de hospitais que oferecem o serviço: oito, sendo seis na capital paulista. Já a Região Norte conta com apenas duas unidades de saúde onde há serviço de aborto legal, em Manaus (AM) e Palmas (TO).
Diante deste cenário, dos 17 hospitais que suspenderam ou não realizam mais o serviço, apenas cinco informaram em qual outro hospital seria possível conseguir o procedimento. O Hospital Maternidade de Piabetá, na cidade de Magé (RJ), instruiu a usuária a buscar hospitais na capital.
Gabriela Rondon, pesquisadora do Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero, destaca que a quarentena dificulta ainda mais o acesso ao serviço: “A suspensão do aborto legal é uma grave violação dos direitos das mulheres nesse momento, ainda mais considerando que a capacidade de mobilidade das mulheres está reduzida. Uma gestante não pode atravessar um estado para buscar atendimento”.
Segundo Rondon, o isolamento aumenta os episódios de violência contra a mulher, inclusive sexual, um dos fatores que pode levar as vítimas a buscarem o aborto legal: “Esses dados expressam problemas crônicos que temos no Brasil: baixa oferta desse serviço e dificuldade de acesso a informação sobre sua disponibilidade. Esses problemas são anteriores à pandemia, já que a cobertura da interrupção legal da gravidez já era muito pequena para um país do tamanho do Brasil”.
A violência física e sexual contra mulheres aumentou durante o isolamento social provocado pelo coronavírus. O número de feminicídios cresceu 22% em 12 estados brasileiros nos meses de março e abril, segundo um levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Em 2018, o país registrou 180 estupros por dia e 81% das vítimas eram mulheres, segundo dados do Anuário Brasileiro da Segurança Pública publicado pelo mesmo Fórum.
Necessidade de B.O e outros impedimentos
Ao contrário do que determina a norma técnica de Atenção Humanizada às Pessoas em Situação de Violência Sexual do Ministério da Saúde, segundo a qual não é necessário apresentar boletim de ocorrência (B.O.) ou autorização judicial para realizar o procedimento em casos de violência sexual, quatro hospitais mencionaram essa necessidade, enquanto três pediram um encaminhamento médico.
Para o ginecologista e obstetra da Fiocruz, essa é uma das maneiras de punir a mulher mais uma vez, em especial as vítimas de violência, que têm que passar pelo constrangimento de relatar a violência sexual em uma delegacia e para a equipe de saúde. “Muitos serviços partem do princípio de que as mulheres buscam o aborto mentindo para os profissionais de saúde. São motivados por preconceito ou por achar que, se os serviços não exigirem o boletim, vão virar clínicas de aborto. O profissional tem que estar atento às demandas da mulher e não ter o papel de polícia. Existe um enorme preconceito contra essa questão e cria-se todo tipo de desculpas para dificultar o acesso” pontua.
O foco do acolhimento para vítimas de violência são os fatos que elas levam ao serviço de acolhimento, explica Sandra Leite, coordenadora do Centro de Atenção à Mulher Vítima de Violência Sony Santos, em Recife (PE): “O B.O. não é uma prerrogativa. Aqui é um serviço de saúde, não de justiça. Nós trabalhamos de acordo com a norma técnica do Ministério da Saúde e ela não pede boletim de ocorrência. O que a mulher traz como história de vida é a verdade. O que a permite entrar no protocolo são as datas dos acontecimentos e os exames; então a equipe avalia se caso se encaixa no protocolo”.
Na pandemia, o centro recifense mantém o atendimento 24 horas, mas a procura por acolhimento de vítimas de violência caiu. Sandra Leite acredita ser um efeito das medidas de isolamento social na cidade. O Centro Sony Santos trabalha em parceria com a Delegacia da Mulher para registrar os casos de violência sexual, se as vítimas desejarem. A lei 12.845/2013 determina que é papel do serviço de saúde estimular o registro das ocorrências.
A maternidade Odete Valadares em Belo Horizonte (MG) e o hospital Universitário Ebserh Polydoro Ernani em Florianópolis (SC) afirmaram não ser permitida a presença de acompanhante durante o procedimento, o que fere o direito das gestantes expresso na Lei Federal nº 11.108/2005. Segundo Dias, no início da pandemia e por medo da contaminação de gestantes saudáveis, maternidades do mundo todo decidiram separar as mulheres, que ficavam sozinhas: “Mas rapidamente as maternidades viram que essa era uma situação inimaginável, de perda de direito, e isso foi revertido. Restringir o direito a um acompanhante não se justifica. Existem maneiras de permitir que a mulher tenha um acompanhante sem trazer mais riscos para outras pessoas”.
Cumprimento da lei e prevenção à covid-19
O levantamento também buscou saber as medidas de prevenção das unidades de saúde sobre o contágio pelo novo coronavírus. A principal recomendação dos hospitais para a proteção da gestante ao acessar o serviço de aborto legal foi o uso de máscara, mencionado por 35 unidades; quatro mencionaram a lavagem de mãos e uma destacou o uso de álcool em gel.
Com um ministro de Saúde interino desde 15 de abril e um número crescente de mortos por covid-19 no país, Marcos Augusto Bastos Dias, do Instituto Fernandes Figueira, afirma que neste momento os direitos sexuais e reprodutivos não devem ser ignorados, mas que dificilmente esse monitoramento vai partir do Ministério.
“Nesse momento, as mulheres que vão ter que se fazer ouvir, porque não vejo nenhuma iniciativa que não venha delas e do terceiro setor. Somente por pressão esta questão será pautada e cobrada das maternidades. As mulheres estão sozinhas, desprotegidas e com acesso restrito a um serviço essencial”, explica o ginecologista e obstetra.
Casos de bom atendimento
O levantamento também mostrou o cumprimento da lei e bom atendimento em alguns casos. Um deles foi o Hospital Júlia Kubitschek, em Belo Horizonte (MG), onde a funcionária perguntou quanto tempo a usuária do serviço tinha de gestação, se vivia sozinha e se tinha alguém que sabia da situação. Em seguida, pediu seu contato e disse que retornaria para agendar. No Hospital Municipal Tide Setubal, em São Paulo (SP), a atendente apenas quis agendar a consulta, sem muitas perguntas.
“As pessoas precisam entender que o acesso ao aborto legal é um cuidado em saúde absolutamente essencial em qualquer momento e ainda mais essencial em uma crise. A maioria das vítimas são meninas, adolescentes e crianças, e não podemos imaginar o que significa para o futuro dessas jovens não ter acesso a esse serviço nesse momento. Não é algo que pode ser adiado ou ignorado”, finaliza a pesquisadora da Anis.
*Vitória Régia é repórter da Gênero e Número e Leticia Ferreira é repórter da Revista AzMina
Publicado originalmente em AQUI