Carta aberta ao Tribunal de Justiça do Estado da Bahia

A Organização Tamo Juntas, associação da sociedade civil voltada ao acolhimento multidisciplinar de mulheres em situação de violência e vulnerabilidade social, CNPJ 25.244.218/0001-12, vem a público manifestar preocupação com o fim do prazo de cumprimento das medidas protetivas vigentes no contexto da política de isolamento que tem sido adotada nos municípios baianos com casos confirmados de COVID-19.

Dados recentes têm apontado que a violência doméstica e familiar tende a crescer no contexto de isolamento – é o que demonstra a realidade paulista, fluminense e gaúcha. Além disso, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos registrou aumento de nove por cento das denúncias de violência doméstica e familiar desde o início da política de isolamento. Este aumento que temos verificado no Brasil é uma realidade global, considerando que países como a China e Portugal verificaram o mesmo fenômeno, demonstrando um índice ainda mais expressivo na medida em que se prolonga a reclusão.

A ONU Mulheres, em publicação de março de 2020, destacou os impactos específicos que a pandemia da COVID-19 apresenta na vida das mulheres, dentre eles o aumento da violência doméstica e familiar em um contexto de emergência, salientando, igualmente, a necessidade dos governos em manter políticas de proteção às vítimas e em adotar medidas urgentes para combater a violência doméstica no curso da pandemia.

Há de se ter em vista que as mulheres estão na linha de frente nos cuidados em saúde da população afetada pelos sintomas desta nova doença, assim como são as principais responsáveis pelos cuidados com os membros da família e pelas tarefas domésticas. Estima-se que pouco mais da metade dos lares baianos sejam chefiados por mulheres, segundo os dados da Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia, divulgados em 2018.

Ainda que o trabalho produtivo tenha sofrido contundente refreamento, o trabalho da reprodução social da vida segue intenso nos cuidados individuais e coletivos para que as pessoas não sejam infectadas pelo SARS-CoV 2, e o protagonismo deste trabalho é feminino. As mulheres, mais uma vez, demonstram sua relevância na defesa de interesses comunitários. Nada mais justo, portanto, exigirmos reconhecimento e solidariedade com nossas as mulheres que se encontram em situação de violência.

Por isso, pleiteamos que o Poder Judiciário baiano adote medidas adequadas no enfrentamento à violência doméstica e familiar a fim de proteger o direito à vida das mulheres. Dentre essas medidas, destacamos a necessidade da renovação automática das medidas protetivas de urgência hoje vigentes, desde o início do isolamento até 30 dias após o reestabelecimento dos serviços públicos, como forma de garantir a proteção das mulheres em situação de risco.

Consideramos tal medida necessária, urgente e viável do ponto de vista jurídico, uma vez que as medidas protetivas de urgência independem da existência de inquérito ou de ação penal em curso. Além disso, a Lei Maria da Penha não prevê em seu texto prazo específico para a manutenção das medidas protetivas, devendo estas perdurarem pelo tempo em que se fizerem necessárias. Assim, o pedido aqui apresentado de renovação automática somente é necessário porque a jurisprudência deste Tribunal criou um prazo de seis meses para as medidas protetivas, a ser renovado mediante pedido da parte autora, o que em nosso entendimento contraria a legalidade.

A renovação automática das medidas protetivas de urgência em decorrência da pandemia não viola qualquer direito; do contrário, a revogação das medidas sem a verificação de que a mulher em situação de violência de fato encontra-se a salvo de novas violações de direito é o que verdadeiramente ofende o compromisso firmado pelo Estado brasileiro no enfrentamento à violência doméstica e familiar.

Ressalta-se que tanto o Poder Judiciário quanto o aparato de segurança pública no estado encontram-se com restrições de atendimento ao público. Além disso, a maioria das mulheres em situação de violência são acompanhadas pela Defensoria Pública, que também se encontra com restrições em seu atendimento; essas mulheres em sua maioria também são vulneráveis economicamente, dependem do transporte público que também está com a frota reduzida, não possuem acesso livre à internet e a outros meios de acesso à informação.

Do ponto de vista legal, fundamentamo-nos no reconhecimento do estado de calamidade pública em âmbito federal (Decreto legislativo n° 6/2020) e estadual (Decreto n° 64.879, de 20/3/2020); na recomendação de recolhimento domiciliar pela Organização Mundial da Saúde (OMS), Ministério da Saúde e o Decreto do Governo do Estado da Bahia instituindo quarentena (Decreto n° 19.529, 16 de março de 2020); na Resolução n° 313 do CNJ, determinando a suspensão de todos os prazos processuais até dia 30 de abril de 2020; nas disposições da Convenção para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (Decreto nº 4.377, de 13 de setembro de 2002); na Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Decreto nº 1.973, de 1º de agosto de 1996) e na Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006).
Portanto, ao levarmos em consideração que a atual política de isolamento prejudica a livre manifestação das mulheres em situação de violência pela continuidade das medidas protetivas, e que, em um contexto de isolamento, a denúncia por chamada telefônica representa verdadeiro perigo para a denunciante, requeremos a renovação automática das medidas protetivas de urgência, considerando o prazo do início da quarentena (16 de março de 2020) até 30 dias após o reestabelecimento integral dos serviços, é a decisão mais acertada, correspondendo a melhor interpretação dos institutos legais e concretização dos direitos humanos das mulheres.Na oportunidade, expressamos os mais elevados protestos de consideração.

Salvador, 30 de março de 2020.

LAINA CRISÓSTOMO SOUZA DE QUEIROZ
Co-Fundadora e Presidenta da TamoJuntas

TJBA: Não mudem o nome das Varas de Violência Doméstica e Familiar! Não há paz, se não houver JUSTIÇA!

Essa petição visa denunciar o absurdo que está acontecendo na Bahia e se estenderá em breve para todo país que é a mudança do nome da Varas de Violência Doméstica e Familiar para Varas de Justiça Pela Paz em Casa que silenciará e violentará ainda mais as mulheres.

No Brasil 500 mulheres são agredidas por hora, 1 mulher é estuprada a cada 11 minutos, 1 mulher é morta a cada 1h30 vítimas de feminicidio, como podemos falar de paz em casa?

O que significa se tentar incluir Justiça Restaurativa nas varas de violências, o que poderemos restaurar de um relação violenta que deixa marcas não somente nas mulheres, mas também nas crianças que as estatísticas mostram que serão novas vitimas de violência ou potenciais agressores?

Com essa petição queremos chamar atenção não somente do Tribunal de Justiça da Bahia, mas do Conselho Nacional de Justiça e também do Supremo Tribunal Federal para que desfaçam essa loucura cometida no Estado e que o CNJ e STF não permita que isso ocorra no restante do Brasil.

O movimento de mulheres não se calará diante de mais essa INJUSTIÇA!

Assinem e compartilhem!!!

https://secure.avaaz.org/po/petition/Mulheres_organizacao_de_mulheres_organizacoes_feministas_movimento_de_mu_Nao_ha_paz_se_nao_houver_JUSTICA_Nao_a_Vara_de_/?cdJOkmb

Nossa história recontada por nós: Viva Zumbi! Viva Palmares! Aqualtune? Quem é essa?

Por Laina Crisóstomo

Toda história da civilização é contada pelos homens, com os homens e para fortalecer os homens, mas onde estamos nós nas nossas próprias histórias?

Quero falar nesse texto de uma mulher negra incrível como muitas de nós que teve por anos sua história de luta, resistência omitida com o único objetivo de nos fazer desacreditar de nosso poder, conhecimento e capacidade de mudar o mundo, ela é Aqualtune. Quem é ela? Se eu disser que ela é avó de Zumbi todo mundo dirá: Ah! Por que não disse isso antes? Porque não quero dizer isso, não quero mais uma vez contar a história de uma mulher a partir de um homem, quero falar dela, por ela, para ela e com ela.

Aqualtune é uma mulher negra oriunda do Continente Africano, era princesa no Congo. Em 1665 liderou a Batalha de Mbwila entre o Reino do Congo e Portugal, quando após a derrota foi capturada, aprisionada e trazida para o Brasil e vendida como escrava reprodutora. Conta a história que Aqualtune comandou um exercito com 10 mil homens a fim de combater a invasão de seu reino, mas infelizmente não teve êxito.

Ela foi negociada para ser escrava reprodutora, afinal era grande, forte e de ancas largas (boa para parir), mas como era guerreira se revoltou e fugiu para participar da consolidação de Palmares. Como princesa e comandante do exercito no Congo ela tinha muitos conhecimentos políticos, organizacionais e de estratégia de guerra mesmo o que foi, sem dúvidas, fundamental para a República de Palmares.

Entretanto por que falar sobre isso no site da TamoJuntas? Primeiro porque é Julho das Pretas e precisamos conhecer nossas histórias porque representatividade importa muito e segundo porque o texto não acabou e quero trazer uma reflexão sobre violência obstétrica.

O que Aqualtune tem que ver com Violência Obstétrica, Laina? TUDO. Ela foi vendida como escrava reprodutora, mas por quê? Pelos motivos que já mencionei em dois parágrafos acima, sim, mas e ai? Hoje quem são a mulheres que mais sofrem por mortalidade materna e violência obstétrica no Brasil? Bingo, mulheres negras e por quê? Por possuírem as mesmas características que Aqualtune.

Então estamos dizendo que existe racismo no sistema de saúde? Lógico e a perversidade como ele se mantém, se dissemina e aumenta o número de adeptos é assustadora. Os números oficiais falam que 62,8% das vitimas de mortalidade materna são mulheres negras, 65,9% das mulheres que sofrem violência obstétrica são negras, isso quer nos dizer algo, quer denunciar que desde o século 17 nada mudou, mesmo com leis, planos, pactos, políticas públicas, o racismo permanece entranhado nas instituições e nos matando cada dia de uma forma!

Mulheres negras sofrem com o mito de que “são fortes e aguentam a dor” e por isso normalmente não recebem anestesia, poucas conseguem ser acompanhadas no parto (aproximadamente 27%). Mulheres negras e brancas numa mesma comunidade periférica tendem a ter atendimentos diferenciados, mulheres brancas são atendidas por mais tempo, em razão do outro mito também do período da escravidão de que eram frágeis e delicadas necessitando assim de cuidados especiais.

Mulheres negras sofrem violações todos os dias, inclusive de mulheres brancas, que estejamos atentas não somente no Julho das Pretas ou no Novembro Negro, mas todo o ano, afinal 500 anos de escravização não muda mentes da noite para dia, é preciso lutar todos os dias!

Por que continuamos com nossos companheiros em relacionamentos abusivos?

Por Laura Augusta

Existe um mito que cerceia a afetividade das mulheres, quando tocamos no assunto da violência de gênero e da construção das afetividades, que é a manutenção e permanência desse relacionamento, ou seja, quando mesmo sabendo dos riscos de aumento de intensidade de violência e de feminicídio, a decisão tomada pela mulher é a de permanência no seu relacionamento, seja por ‘x’ motivos. Ao senso comum, com poucas exceções, a mulher alimenta o comportamento misógino daquele agressor, logo, apanha porque gosta.

Porém, colocando a deixa á ciência que muito contribuiu através de anos sendo omissa, fomentando a desigualdade de gênero e a misoginia em diversas vertentes como o Direito, Psicologia, Serviço Social, Medicina e etc, quando observamos esses fenômenos de uma perspectiva sócio-histórica e interseccional, podemos perceber a emergência de alguns fatores que não podem ficar em silêncio.

Quando convido a reflexão por essa vertente, quero dizer que historicamente no nosso país que foi colônia de exploração de Portugal, teve suas riquezas extraídas para alimentar o império europeu, a mulher é sempre objetificada em seu espaço de adorno. Seja o adorno que embeleza a casa ou aquele que presta o serviço para que a casa continue embelezada. O lugar da mulher, socialmente representado, sempre foi de objeto. E até hoje, grande parte da população brasileira revive e vive re-vitimizada desse lugar social. Partindo aqui a segunda parte do convite, quando focalizo interseccionalmente, explicando que a maioria da população brasileira é negra e feminina.

Conjugando essas opressões e crescendo numa sociedade que alimenta a estrutura das mesmas através de estereótipos de masculinidades que promovem o fenômeno da violência, este que bebe de uma origem escravocrata, é muito complicado se olhar no espelho e enxergar-se vítima, com paradigmas como o da meritocracia e da democracia racial, tão fortalecidos, gritando que as mulheres, principalmente negras e pobres, precisam ser mais esforçadas e que todos somos iguais.

Quando afirmo este lugar de mulher negra pobre e periférica, não anulo as violência das outras mulheres. Afirmo estas e apresento os privilégios sociais que aprisionam a maioria da população brasileira em situação de vulnerabilidade. O que violência de Gênero tem a ver com concentração de renda, com pertencimento racial e sofrimentos difusos? Simples. Se temos em um país rico como o Brasil, onde os 5% mais ricos detêm 28% da renda total e da riqueza, sendo estes homens brancos, a representatividade econômica realiza sua exclusão de raça e gênero. Sendo assim direitos trabalhistas de igualdade, garantia de direitos adquiridos e eficácia das leis que protegem mulheres em profissões que são majoritariamente femininas ficam sempre no limbo do critério de quem irá exercer a justiça. Se ha maior concentração de renda nas maos de homens brancos e suas familias, sabemos que a desigualdade tem nome, sobrenome e endereço certo. E que na hierarquia das opressões, as que irão ficar desassistidas nessa história, desde sempre : As mulheres negras.

Essa desassistência que atravessa a diáspora e se estrutura em terras estranhas, se arrastando por anos em lacunas de lutos mal elaborados, de depressões não permitidas, de mudança de nome, de colonização e das negações que essa estrutura promove, as afetividades são construídas assim. Da negação e da necessidade. A necessidade primária pode ser a comida na mesa e a escola, a saúde, a segurança pública que é dever do estado,que não teve acesso. Porém, para além disso, está a infância construída nas referências do trabalho escravo, a rede de apoio de amigos e amigas, se perdendo aos poucos todos os dias pela violência policial e pelas outras diversas ações do plano genocida. Está na forma que as relações são construídas nesse cenário, a maternidade, as relações afetivas e as formas de educar os filhos. A maneira que demonstra-se afeto em família e até mesmo, o que seria família.

Cada passo dado em busca das respostas para esse fenômeno são feridas abertas que encontramos e que todos afirmam que elas existem e estão gravemente expostas, porém pouquíssimas pessoas,e instituições se debruçam a cuidá-las. Temos no Brasil, a cultura de prevenirmos de doenças epidêmicas porém não construímos hábitos de promoção de saúde. Temos leis que combatem a violência de gênero em sua instância física e no assassinato, Porém, falar sobre como chegamos aqui e construir caminhos para que o ciclo reordene seus passos para fora da violência é algo raro e que precisa ser pensado com urgência.

Esse texto, apesar de carregar em seu título uma prerrogativa de resposta, não responde esses fatos. Afinal, dentro desse contexto bizarro que fomos educados, muito difícil ( e cada mulher negra que combate contra a misoginia na luta antirracista sabe) sair ileso desse tiroteio de opressões. Os relacionamentos abusivos que se mantém por motivos inúmeros, podem ser como band-aids para úlceras. Não resolvem o problema, denunciam que a ferida é gigantesca, porém o processo de cuidado é sempre pautado no princípio bioético de autonomia. Porém é possível ter autonomia, diante de todo o contexto trazido nas linhas acima? Continuemos em luta.

Dar-se valor – Uma narrativa honesta sobre auto-estima, sororidade e identidade feminina negra numa construção racista.

Por Laura Augusta

Escrever nem sempre é uma tarefa fácil, principalmente quando existe um universo de situações e pessoas criticando, sem sugestões, o processo de construção textual. Quando estamos aprendendo algo e alguém nos diz que estamos no caminho errado, sem sugestões de melhora, com várias portas fechadas é realmente muito difícil estar segura e até mesmo falar sobre o ‘não conseguir’ construir um texto sozinha . Esse é um exemplo cotidiano no mundo de milhares de mulheres negras que gostariam muito de se expressar textualmente sobre seus sentimentos, mas assim como são os textos, são as dores, as experiências, o conforto, respeito e a vida dessas pessoas.

A nossa auto-estima é construída na relação com outro e para nós que estivemos sempre no lugar de negação, tudo é questionado. Nossa capacidade intelectual, nossa beleza, nossa história, nosso pertencimento religioso, as histórias das nossas mães, avós , tias. Nossas indumentárias. Tudo é passível de questionamento. E crescer negra e mulher numa sociedade que tudo questiona é sofrer psiquicamente todos os dias os danos ancestrais do não lugar no mundo, no mercado de trabalho, na vida das pessoas, nas experiências afetivas e por fim reviver violências e ser conduzida a achar natural tudo isso.

Quando o feminismo surge e coloca em pauta as relações de gênero, fazendo emergir a palavra sororidade que se tornou um boom nas redes sociais e nas conversas militantes no combate ao machismo, tudo se tornava tão longe de nós, pois as nossas feridas são tão profundas e tão velhas que fica difícil dialogar sobre voto e trabalho num nível tão desonesto e sem equidade que ficamos realmente distantes em tudo. E toda proposta de possível afetividade entre mulheres nunca será justa enquanto não colocarmos na balança dos privilégios quem sofre e quem sempre sofreu mais. Então escrever, falar,aprender, se relacionar, construir uma carreira firme ou o primeiro emprego, tudo isso é muito injusto quando colocamos na mesa a falácia dos méritos.

Se observarmos com uma lupa racial quem majoritariamente ocupa os trabalhos de prestação de serviço de base iremos ver a nossa cara estampada obrigatoriamente nesse espaço, pois socialmente esses são apenas os espaços que nos esperam. Logo, para se mover socialmente na pirâmide do capital, requer muita energia pra enfrentar essas galinhas pulando todos os dias. E essa energia é saúde, é desgaste que são potenciais fatores para os adoecimentos que já conhecemos nas histórias de nossas mães, avós, tias e que acabamos herdando geneticamente.

O ‘se dar valor’ aqui, quando colocamos no papel, quando expressamos a nossa história, nossos sonhos e desejos seja pela voz, pela dança, pelo olhar, pela reatividade, tem um outro sentido. Se dar valor aqui, não significa se recatar ou se padronizar ao silêncio que se espera de nós, dar-se valor aqui não significa uma cobrança como se o valor fosse como um preço. O valor aqui é uma lembrança, uma memória de Dandara, Akotirene, Maria Felipa e de tantas que a história silenciou, mas deixaram para nós a riqueza sem preço das estratégias de luta, sobrevivência e principalmente vitória. Se dar valor aqui significa não aceitar nenhum dialogo sobre nós como recorte, sabendo que somos a maioria da população brasileira.  A caminhada tem sido de muitos calos, de muitos furtos, muitas pedras no meio da estrada, mas a cada encruzilhada encontramos um potente motivo para continuar caminhando, no encontro do caminhar das outras e ensinando as que estão vindo a andar, sem romantismo, mas com muito afeto.

Nome de algo

Mais sobre nós por nós mesmas!

Por Laina Crisóstomo

Já faz um tempo que tenho tido a vontade de escrever sobre Maria Felipa, sua história de luta é encantadora, forte e infelizmente como a história de muitas, não são contadas nas escolas. Maria Felipa foi escravizada, todavia nunca deixou de ser guerreira e justa e por isso com a tentativa de Portugal em manter o Brasil como Colônia, decide se juntar ao Movimento de Libertação, sai da Ilha de Itaparica e vai de barco a Salvador dizer que está disposta a lutar ao lado do Movimento, este simplesmente a colocou na retaguarda, caso fosse necessário a chamaria, mas ela não aceitou.

Então Maria Felipa descobre que estão chegando 42 (quarenta e duas) embarcações e decide se organizar para atacar e é isso que faz, reúne mais 40 (quarenta) mulheres, se produzem, como diríamos literalmente “vestidas para matar” e vão a luta. Seduzem os soldados e comandantes e estes certos de que iriam se relacionar com as mulheres do grupo de Maria Felipa vão para um lugar ermo para onde elas os guiam, vão sem saber que o que os espera não é o que pensam, tiram as roupas e de repente são surpreendidas por uma surra de cansanção, enquanto apanhavam e tinham seu corpo queimado pela planta vi ao longe suas embarcações serem queimadas e afundadas.

Sim, essa mulher é maravilhosa, forte, estrategista de guerra mesmo, mas como o texto de Aqualtune não quero apenas falar de Maria Felipa, mas quero trazer sua história para nossa história, como? Falando sobre hipersexualização das mulheres negras, como nossos corpos expostos dão o “direito” aos homens de invadi-los, toma-los e achar que estamos disponíveis.

Propaganda de cerveja preta, Globeleza, Imagens de mulata em propagandas do Governo para atrair turistas, e muito mais. Parece que não há limite para “vender” nossos corpos e Maria Felipa nos mostra a força das mulheres negras que para além dos corpos, possuem mentes brilhantes para não somente combater na guerra, mas contra o machismo, racismo e patriarcado.

Preta defende preta

Por Ana Verena Menezes

A temática “ Nós, mulheres negras” por si só retira a possibilidade de qualquer abordagem impessoal sobre o assunto: aqui somos nós, pretas, falando sobre nossas vivências.  Esse texto se propõe de forma breve e não exaustiva a discutir a ambiguidade de ser mulher, negra, advogada e ativista feminista e ao mesmo tempo apoiar outras mulheres negras vítimas de violência de gênero. Ainda que aparentemente ocupemos lugares diferentes nessa luta somos atingidas por uma violência estrutural que se apresenta em diversas formas e níveis.

O sistema jurídico não foi desenhado para a mulher e muito menos para a mulher negra. Essa afirmação é facilmente confirmada quando analisamos historicamente como surgiram as primeiras codificações e constituições do Brasil. A primeira codificação existente no Brasil foi o Código Civil que tinha como objetivo principal a proteção da propriedade. Não me estenderei muito sobre o assunto mas o fato é que mulheres não eram detentoras de propriedade alguma e as mulheres negras muito menos. A mulher negra no Brasil que por muito tempo esteve na condição de escrava era considerada um bem, posse e não proprietária de qualquer coisa.

Essas pequenas considerações são importantes para entender as desigualdades que se refletem hoje em dia. O ambiente jurídico, apesar de ter cada vez mais a presença de mulheres, mantém os mesmos valores machistas e racistas. Ser mulher negra e advogada é uma posição que definitivamente apresenta uma série de percalços extras. Desde não ser sequer reconhecida como advogada, à falta de espaço laboral, o não reconhecimento das suas habilidades e à pressão estética. Ser mulher negra e advogada é estar lutando contra tudo e todos, porque sua pele, seu cabelo, seu corpo não são nem um pouco o que se espera de uma profissão que foi por muito tempo destinada a uma elite branca e machista.

Enquanto o próprio mundo jurídico ignora ou tenta conformar os nossos corpos estamos ao mesmo tempo lidando com opressões externas e no caso da TamoJuntas defendendo mulheres da violência de gênero. Os índices de violência de gênero têm aumentado para as mulheres negras enquanto diminuiu em relação às mulheres brancas. As mulheres negras em verdade vivem em um ambiente hostil que se revela em suas relações afetivas, no abandono e solidão, na falta de poder econômico, ao assistirem seus filhos negros serem os maiores vitimados no genocídio da juventude negra. As mulheres negras são a maioria população carcerária nas prisões femininas, não estão representadas como as grandes protagonistas das histórias, não são celebradas ou até escaladas para filmes, novelas e na mídia.  As mulheres negras sofrem violência até no momento do parto quando são equivocadamente interpretadas como menos sensíveis à dor, as mulheres lésbicas, bi e trans negras agregam mais um fator que as colocam como potenciais vítimas.

Dentro desse contexto violento a mulher negra advogada ao tempo em que sofre uma pressão que a compele a não estar incluída no mundo jurídico tem o papel de apoiar e fazer valer os direitos de outras mulheres negras. No ativismo e no trabalho voluntário voltado para mulheres esse papel se reforça. Encontramos motivação na crença da mudança e na esperança de proporcionar a justiça a essas mulheres. Encontramos motivação quando uma cliente negra diz: que bom ver você aqui,  queria que minha filha pequena visse uma advogada negra e se inspirasse em você.

Essa semana foi veiculada uma notícia na qual uma mulher negra ajudou a uma desconhecida que desmaiou na rua. Ela passou oito horas no posto de saúde sem querer deixar essa outra mulher preta sozinha à própria sorte. Essa notícia de certo modo reflete um pouco do que é o sentimento do voluntariado de preta para preta. Não podemos deixar vítimas de tantas violências sem apoio diante das injustiças que acontecem com elas – por serem mulheres e por serem pretas. Porque no fundo não tem muita coisa que nos distancie, poderia ser eu ali mas por acaso não é. Ali estamos juntas utilizando as ferramentas possíveis (dentro de um sistema que não foi feito para nós) para colocar ao nosso favor a justiça que merecemos.

Estupro também tem cor

por Glauce Souza Santos


Rememorar e refletir a respeito dos processos de construções da identidade nacional brasileira, baseados na violação colonial perpetrada pelos senhores brancos contra as mulheres negras e indígenas, pode nos ajudar a entender as bases dos terríveis casos de violência contra a mulher, ainda tão recorrentes em nosso país. Sueli Carneiro ao analisar a situação da mulher negra na América Latina afirma que essa violação e miscigenação resultante desse processo está na origem de todas as construções de nossa identidade nacional, estruturando o mito da democracia racial latino-americana, que no Brasil chegou até as últimas consequências.

No Brasil do século XVI estuprava-se para colonizar. Estuprava-se para fazer crescer o país. Estuprava-se para solidificar as hierarquias de gênero e raça. Em pleno século XXI essa cultura do estupro ainda é perpetuada. Colhemos os frutos de uma colonização violenta e, infelizmente, somos uma nação machista e perversa, principalmente com o corpo das mulheres negras que representa 51% dos casos de violência sexual no Brasil.

O papel de romancear os inúmeros casos de exploração sexual das mulheres negras ficou a cargo das narrativas literárias e históricas. Essas narrativas encontraram terreno fértil no imaginário coletivo e contribuíram de forma significativa para a naturalização do estupro em nosso cotidiano. Quem não ouviu falar na índia capturada no mato para se casar com um homem branco e servi-lo? O que dizer dos inúmeros casos de senhores de engenhos que estupravam suas escravas? E aquele padrasto, pai ou tio que abusou da menina de apenas quatro anos de idade e ninguém denunciou? Não dá para esquecer, por exemplo, o poema de Jorge de Lima que, na voz da sinhazinha, culpabiliza a Negra Fulô por ter sido estuprada por seu senhor no momento do açoite. Até hoje a voz da sinhazinha sentencia: “Também… com aquela roupa curta, estava pedindo pra ser estuprada, não é?” “Não era para ela estar naquele lugar!”
Todos esses atos de violência sexual sedimentaram e sedimentam as hierarquias de gênero e raça no Brasil. Rosiska Darcy de Oliveira aponta que é necessário saber de onde vem tanto ódio contra as mulheres e estancá-lo. Mas como fazer isso em um país em que nossos políticos se recusam desconstruir tais hierarquias, rejeitando, por exemplo, com veemência, a proposta de discussão das questões de gêneros indicada pelo Plano Nacional de Educação?

Diante de um tempo desfavorável politicamente, cabe a nós: educadores (as), líderes religiosos (as), pais, mães e demais membros da sociedade civil, comprometidos com uma mudança social e radical no país, trabalharmos pelas vias alternativas: insistindo na problematização das noções culturais sobre o papel de homens e mulheres na sociedade, levando em consideração as questões raciais. Assim, estaremos contribuindo com a desconstrução de uma lógica masculina, branca e perversa que sexualiza, exacerbadamente, a mulher negra; legitima o estupro; culpabiliza, constantemente, a vítima; e dita as regras para ser e estar no mundo.

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