A sentença de “estupro culposo” que absolveu o empresário André de Camargo Aranha da acusação de violência sexual contra a promotora de eventos Mariana Ferrer, de 23 anos, abre um precedente perigoso e violento que reforça a cultura do estupro no país. Essa é a avaliação da advogada Letícia Ferreira, que há quatro anos integra a equipe do coletivo “TamoJuntas”, que presta serviço jurídico, psicológico e social gratuito para mulheres vítimas de violência. A organização feminista é composta por profissionais de diversas áreas que atuam voluntariamente na assistência multidisciplinar a mulheres em situação de violência. O “TamoJuntas” possui voluntárias em diversas regiões do Brasil.
A advogada acredita que a decisão do juiz Rudson Marcos, da 3ª Vara Criminal de Florianópolis, responsável pelo caso, mostra como a cultura do estupro está disseminada e inclusive se perpetua na não responsabilização dos agressores e na dificuldade que as mulheres tem em responsabilizá-los pelo crime.
“Até porque elas são tratadas com uma conduta suspeita, aproveitadoras, mentirosas, ou como mulheres cujo comportamento facilitaria o crime. Então são diversas justificativas que, na verdade, só vem confirmar que vivemos todas as esferas da sociedade sob a ótica e a perspectiva de uma cultura misógina e que reforça e naturaliza a violência sexual”, argumenta Letícia Ferreira.
Imagens da audiência do caso de estupro de Mari Ferrer foram divulgadas pelo The Intercept Brasil nesta terça-feira (3) (veja aqui). Os trechos divulgados repercutiram, causaram revolta e deixaram o assunto entre os assuntos mais comentados nas redes sociais. Na ocasião, o empresário André de Camargo Aranha era julgado pelo estupro da jovem em uma festa que ocorreu em 2018. No entendimento no promotor do caso, não havia como Aranha saber, durante o ato sexual, que a vítima não estava em condições de consentir a relação, não existindo assim “intenção” de estuprar.
Na visão de Letícia, a audiência mostra falhas e a violência reforçada pelo poder judiciário em julgamentos do tipo.
“Ele culpabiliza o comportamento da vítima e naturaliza o comportamento do agressor”, ressalta. Ela ainda acrescenta que no caso Ferrer as provas incluíam elementos que confirmavam o relato da promotora de eventos, e mesmo assim o relato foram desconsiderados. “As provas materiais são menosprezadas em virtude de absolver o agressor”, afirmou.
A tese apresentada pelo promotor e acatada pelo juiz, todos homens, não tem precedentes na Justiça brasileira. Exatamente a inexistência de um crime não previsto em lei é que embasou o argumento e acabou em absolvição do empresário.
“Chocante. A sentença traz uma postura inovadora. Traz a figura do estupro culposo, e a absolvição com base em não existir o estupro culposo. De fato, não existe um modo culposo de estupro”, reconheceu. Em seguida ela explica que o estupro é a violência sexual, qualquer ato sexual feito sobre grave ameaça. No caso de Mari Ferrer a tipificação deveria ser, e foi a princípio, como estupro de vulnerável, em que a vítima não tinha condição de dar o seu consentimento.
No vídeo a que o The Intercept teve acesso, o advogado Cláudio Gastão da Rosa Filho, contratado por André de Camargo Aranha para defendê-lo, ataca a vítima e utiliza fotos de Mariana fora de contexto. Ele apresenta fotos sensuais dela e chega a classificar as imagens como “ginecológicas”. Em momento algum foi questionado por membros do Tribunal de Justiça catarinense sobre a relação das fotos com o caso. Em outro momento da audiência, o advogado de Aranha afirma que “jamais teria uma filha” do “nível” de Mariana. Ele também repreende o choro dela: “não adianta vir com esse teu choro dissimulado, falso e essa lábia de crocodilo”.
Em outro momento, o advogado insinua que Mariana tem como “ganha pão” a “desgraça dos outros”.
A conduta de Gastão se mostra como “um evidente abuso do poder de defesa” para a advogada baiana. “O advogado do agressor é extremamente violento, misógino, e acaba por violentar a vítima. E dá para perceber no vídeo que aquela situação é consentida inclusive pelo juiz”, lamenta.
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) vai analisar um pedido de investigação contra o juiz Rudson Marcos que inocentou o empresário. O pedido de investigação contra o magistrado foi apresentado pelo conselheiro do CNJ Henrique Ávila à corregedoria do órgão. Ávila quer que sejam averiguadas responsabilidades do magistrado na condução da audiência por meio da abertura de uma reclamação disciplinar. A proposta deve ser apreciada pelo plenário do Conselho.
O plenário do Senado Federal aprovou nesta terça-feira, por unanimidade, voto de repúdio ao promotor Thiago Carriço, ao advogado Cláudio Gastão da Rosa Filho e ao juiz Rudson Marcos por causa do caso de humilhação a Mariana Ferrer.
O voto foi apresentado pelo senador Fabiano Contarato (Rede-ES), que também entrou com representação contra o juiz do caso no CNJ e contra o promotor no Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). O mesmo será feito contra o advogado do caso na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).
O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, utilizou as redes sociais para criticar a sentença. “As cenas da audiência de Mariana Ferrer são estarrecedoras”, escreveu o ministro. “O sistema de Justiça deve ser instrumento de acolhimento, jamais de tortura e humilhação. Os órgãos de correição devem apurar a responsabilidade dos agentes envolvidos, inclusive daqueles que se omitiram”, defende Gilmar
O caso repercutiu também entre famosos. A atriz Bruna Marquezine publicou a matéria do caso e lamentou. “‘Estupro culposo’, pqp”, escreveu. Enquanto a cantora Iza afirmou que “’Estupro culposo’ não existe”. A atriz Deborah Secco usou as redes sociais para pedir “Justiça por Mariana Ferrer”. Anitta usou o Twitter para mandar uma mensagem para a vítima: “Mariana Ferrer, eu admiro sua coragem de uma forma que você nem imagina”.
Matéria originalmente publicada no BahiaNoticias*