Reabertura da economia sem aula presencial pode elevar desigualdade
As mulheres representam quase nove em cada dez trabalhadores —ocupados ou buscando emprego— que vivem completamente sozinhos com seus filhos menores de 14 anos no país.
Entre os quase 2 milhões de brasileiros nessa situação, 1,76 milhão pertence ao sexo feminino e 233 mil ao masculino.
As negras estão sobrerepresentadas nesse universo de mulheres vulneráveis, que mais dependem do retorno das aulas presenciais nas escolas do país para desempenhar uma atividade remunerada.
Embora sejam 54% da força de trabalho feminina, as pretas e pardas equivalem a 64%, ou quase 1,1 milhão, das profissionais que são “mães solo”.
Os dados são parte de pesquisa das economistas Cecilia Machado, Luciana Rabelo e Maria Clara Varella, da EPGE, escola ligada à FGV.
O estudo analisou o impacto da retomada econômica sobre domicílios de diferentes configurações, que têm em comum a presença de crianças. O trabalho mostra que 44% da força de trabalho —que inclui profissionais ocupados ou buscando emprego— está em residências com menores de 14 anos.
“Esse número já mostra a relevância da educação para qualquer análise dos efeitos da reabertura”, diz Cecilia, que também é colunista da Folha.
Recortes do percentual de domicílios com crianças e trabalhadores evidenciam que as mulheres —especialmente as negras— serão as mais afetadas se atividades econômicas suspensas pela pandemia forem retomadas e as escolas permanecerem fechadas.
“Qualquer plano de reabertura sem o retorno da escola presencial tende a ampliar as desigualdades de gênero e de raça, que já são elevadas no Brasil”, afirma a economista.
Em São Paulo, o governo estadual tem liberado, gradualmente, a volta de alguns segmentos econômicos, mas anunciou que as escolas reabrirão, na melhor das hipóteses, em setembro.
O plano prevê que o retorno da educação presencial dependerá de um controle uniforme da contaminação pela Covid-19 e começará com um avanço gradual no nível de ocupação das salas de aula.
Em entrevista publicada pela Folha, o secretário estadual da Educação, Rossieli Soares, disse que “acorda e dorme pensando em quantas mães têm que trabalhar e não têm com quem deixar os filhos”.
Ele não mencionou, porém, o que pode ser feito a respeito delas a curto prazo.
O estudo mostra que a vulnerabilidade das mulheres trabalhadoras com crianças em casa aparece em diversas situações familiares.
Entre os 107 milhões na força de trabalho, 7,2% estão em domicílios com menores de 14 anos chefiados por mulheres sozinhas (que não são parte de um casal). Nesse recorte, pode haver outros trabalhadores na residência, mas a principal responsável pela renda é uma mulher, seja ela mãe, avó, tia ou irmã mais velha.
Em domicílios com essa mesma configuração, onde o chefe, no entanto, é um homem sozinho, a fatia da força de trabalho cai para 1,2%.
“Em qualquer recorte que inclua domicílios com crianças sem a presença de ambos os pais, há mais mulheres como as principais responsáveis pela renda do que homens”, afirma Cecilia.
Essas trabalhadoras —normalmente da baixa renda— têm alta dependência das escolas para exercer suas atividades remuneradas.
Com cinco filhos, de 6, 8, 11, 12 e 15 anos, a diarista Flávia Cristina Moreira dos Santos, que é mãe sozinha, define sua situação como desesperadora. “As famílias de alta renda têm, ao menos, como distrair as crianças. Aqui em casa, não tem videogame, a TV queimou, e só tenho um celular.”
Para cuidar dos filhos, Flávia conta com a ajuda de seus avós, ele com 86 e ela com 84 anos. Sua renda informal vem de bicos com faxinas e eventos. Com a pandemia, a demanda por esses serviços caiu.
“Mas, com eles fora da escola, correndo o dia todo, é mais difícil sair de casa também.”
Nesse período, sua principal fonte de recursos tem sido o benefício emergencial de R$ 1.200 do governo federal.
“Fez uma diferença enorme, é bem mais do que o que eu recebo do Bolsa Família.”
Para especialistas em desigualdade, embora seja compreensível a preocupação prioritária com a saúde, o plano de reabertura da economia deveria estar mais bem integrado à política de volta às aulas.
“A educação é parte da economia, tanto porque os pais precisam trabalhar quanto porque as crianças serão trabalhadoras no futuro”, diz Cecilia.
A preocupação dos pesquisadores com um possível aumento das desigualdades no mercado de trabalho data do início da pandemia.
Na primeira semana de abril, o NBER (National Bureau of Economic Research) publicou um estudo chamado “The impact of Covid-19 on Gender Equality” que alertava para um provável aumento da disparidade de gênero e foi tema de reportagem da Folha.
Com base em dados dos EUA, os autores ressaltavam que o aumento da participação laboral feminina nas últimas décadas não eliminou o desequilíbrio de gênero na distribuição do tempo direcionado a tarefas domésticas.
Eles previam que, por isso, a necessidade de mais horas dedicadas aos filhos durante a pandemia —com escolas fechadas e avós impossibilitados de ajudar com as crianças— tendia a recair mais sobre as mulheres do que os homens
Como as trabalhadoras casadas com crianças, em média, fazem jornadas mais curtas e têm salários mais baixos do que seus maridos, elas respondem por uma menor parcela da renda familiar.
Os autores do artigo argumentaram que esse contexto aumentava o risco de que as mulheres precisassem deixar de trabalhar caso a suspensão das aulas presenciais se estendesse por muito tempo. Eles alertaram, ainda, para a vulnerabilidade enorme das mães sozinhas.
São os mesmos temores que especialistas têm demonstrado em relação ao Brasil.
O estudo da FGV mostra que em 35,5% dos domicílios brasileiros com crianças menores de 14 anos em que os pais são casados ambos trabalham em horário integral.
Mas em 16,4% dessas residências os pais se dedicam totalmente a seus empregos, enquanto as mães trabalham em período parcial. A situação inversa representa apenas 3,2% dos casos.
“Já existe um desequilíbrio grande de gênero no mercado, que tende a aumentar de forma perversa nesse contexto de escolas fechadas”, diz a economista Regina Madalozzo, pesquisadora do Insper.
Para Regina, mesmo em residências onde há uma divisão mais equânime das tarefas domésticas, as mulheres tendem a assumir uma parcela maior dos cuidados com os filhos na pandemia.
“É uma questão cultural, que tem mudado, mas essas mudanças ainda são lentas.”
Entre as famílias de renda mais alta, ela acredita que uma parte das mulheres reduzirá suas jornadas ou até sairá —ainda que temporariamente— do mercado. Estudos mostram que essas interrupções geram efeitos duradouros em aspectos como salário e progressão na carreira.
Nas famílias menos favorecidas, as mães que precisam trabalhar vão, segundo Regina, buscar esquemas alternativos de cuidados para os filhos que, do ponto de vista da saúde pública, também podem ser ruins.
“Muitas mães, vivendo sozinhas ou com outro adulto que precise trabalhar, vão apelar para esquemas como uma vizinha que possa cuidar de seus filhos. Isso também tende a ter efeito negativo sobre a circulação do vírus.”
Soares disse na entrevista à Folha que o governo se preocupa com a situação econômica dos trabalhadores, mas que, neste momento, é a área da Saúde que estabelece prazos para a reabertura.
Especialistas dizem entender a preocupação prioritária com a saúde neste momento, mas ressaltam que, dada a longa duração da crise sanitária, é preciso pensar em políticas públicas e empresariais que evitem um aumento significativo das desigualdades.
Para Regina, é importante manter um auxílio emergencial para mães ou pais sozinhos com filhos pequenos que estejam impossibilitadas de trabalhar —na segunda (30), o governo anunciou que pagará mais R$ 1.200.
Subsídios para empresas que ofereçam esquema flexível e garantia de emprego aos trabalhadores —principalmente as mulheres— são outra solução citada por especialistas.
Cecilia menciona que políticas públicas em prol da saúde mental das famílias —incluindo extensão de licenças-maternidade— estão sendo adotadas em alguns países e poderiam ser consideradas no Brasil.
Outra medida seria a abertura antecipada de creches e escolas apenas para crianças cujos responsáveis não tenham com quem deixá-las.
“Se estamos com um Orçamento de guerra, precisamos discutir que parte será destinada a políticas que garantam que não sairemos da crise com um desigualdade de gênero maior que a que já tínhamos antes dela”, afirma Cecilia.
Foto da matéria: Marcelo Rocha/Folhapress
Originalmente publicado em https://www1.folha.uol.com.br/