“Se você quer ter o seu marido emocionalmente conectado a você, faça sexo regularmente com ele”
“O homem fica nervoso e muito irritado quando fica muitos dias sem fazer sexo”
“Quer ter um homem tranquilo, sereno e calmo ao seu lado? Você saberá o que fazer”
Os “conselhos” acima são trechos de um material entregue no curso de noivos que a Igreja Adventista promove para casais que estão prestes a casar. Ele foi editado em 2019 pela Divisão Sul Americana da IASD, ou seja, foi revisado pouco tempo atrás. Ao ler e perceber que existem coisas muito perigosas nas entrelinhas do material, a campo-grandense e corretora de seguros Jéssica Arruda, de 28 anos, decidiu falar abertamente sobre o assunto na internet. O vídeo (veja acima) com mais de 50 mil visualizações e 1,3 mil comentários no Instagram bombou na internet e balançou a comunidade cristã.
O que preocupou a corretora foi a possibilidade de as pessoas não perceberem o significado de algumas ideias presentes no material. Ideias que legitimam abuso, assédio, violência e transferência de responsabilidade, especialmente para a mulher. Por isso, sem nenhum medo ou receio de exposição, Jéssica ‘rasgou o verbo’.
É claro que o posicionamento da campo-grandense chamou atenção entre seus 1,6 mil seguidores e dividiu opiniões. Mas, o intuito, segundo ela, foi alertar mulheres que carregam sozinhas inúmeras responsabilidades e apontar a necessidade de mudança sobre a abordagem do curso, “afim de uma sociedade menos machista, opressora, violenta e abusiva”, descreve.
Em 17 minutos de vídeo, Jéssica expõe que ao participar do curso, sabia que discursos ultrapassados seriam ditos, mas não imaginava que eles seriam tão perigosos. “Eu sei que a igreja faz cursos como esses tentando alertar o casal para coisas que vão viver no futuro, mas, apesar da intenção, alguns conselhos estão mais próximos da violência, do abuso e de sobrecarregar o parceiro ou parceira”, expõe a corretora que não se deixa levar pelo discurso de muitas instituições religiosas e fala abertamente o que pensa sobre machismo, sociedade patriarcal e o fardo de inúmeras mulheres
“A gente é criada numa cultura em que há o mito de que o homem tem mais necessidade sexual que a mulher. E eu sinto em dizer que não é. Não faz sentido”, diz. “Se você um dia pensou que isso é verdade, eu estou aqui pensando que seria injusto da parte de Deus colocar isso inerente ao corpo físico”, acrescenta.
Jéssica também usa o vídeo para relacionar os discursos com o gigantesco número de casos de violência doméstica e feminicídios. “O número de violência doméstica dentro de uma relação é enorme, tudo isso porque se entende como normal um homem ficar violento porque a mulher não quer sexo”, exemplifica.
Na chuva de comentários, apesar de dezenas de reações positivas, de fieis e não fiéis da igreja, muita gente também sugeriu que Jéssica apenas ignorasse o conteúdo, aparentemente incomodados com a exposição do erro da igreja.
“A minha preocupação maior e a do meu noivo é que ninguém ficou incomodado. As pessoas concordam e aí é que mora o perigo, de esse comportamento ser cada vez mais normalizado. A igreja tem tanta influência sobre as pessoas, e tudo o que ela fala normalmente as pessoas abaixam a cabeça e só absorvem, então eu achei que seria a oportunidade de problematizar mesmo”, disse em entrevista ao Lado B nesta sexta-feira, após inúmeras interações com seus seguidores.
“A proposta não foi falar como tem que ser, mas mostrar onde está o erro e como a igreja tem que promover a reflexão certa. Não é colocar homem em uma caixinha e mulher em outra, porque vão existir dinâmicas diferentes.”
Na visão de Jéssica, é papel da igreja é alertar aquilo que é perigoso e o que vai trazer sofrimento. “Porém, a abordagem ali estava muito errada e muito perigosa. E pelo o que eu tenho lido nas mensagens, muita gente já tinha tido acesso ao material, mas imagino que nem todo mundo sabia dizer de fato qual era o problema. Eu acho que meu vídeo contribuiu demais para que as pessoas percebam e identifiquem qual é a problemática. Eu consegui provocar exatamente o que eu queria.”
“Adventista de berço” como se define, Jéssica é a terceira geração da família de adventistas e sempre fez parte da igreja, participou de ministérios e foi líder na instituição. Apesar da exposição e da proporção que a crítica ao manual elaborado pela igreja tomou, ela diz que permanecerá na rotina religiosa porque acredita que pode fazer a diferença apontando os erros.
Ela acredita que se tivesse apenas ficado decepcionada e saído da igreja sem falar nada, o problema seria maior. “A igreja continuaria doutrinando mais pessoas sem ninguém questionar. Então vamos problematizar e está na hora de mudar. Dessa maneira eu acho que consigo provocar mudanças muito maiores, sempre que a igreja fazer algo que vá contra a Bíblia.”
Ela ainda descreve o pensa sobre as igrejas. “Igreja é uma comunidade que se relaciona, ela é uma escolha consciente de se reunir com pessoas que pensam como você. A igreja erra, a igreja tem suas limitações. Lembro de um pastor que falava que a igreja nada mais é do que um hospital onde tem um monte de gente doente tentando se curar. A igreja não é lugar de gente saudável, se fosse todo mundo saudável você não precisava dela. Então, eu fico muito assustada com a repercussão desse vídeo em que as pessoas ficam mais preocupadas de deu ter escrachado todos os erros do que o problema em si, como estupro, abuso e maridos sofrendo porque acham que tem que resolver tudo. Isso são pensamentos de fieis que ainda não entenderam o que é igreja”, finaliza.
Promessa de mudança – Com a repercussão do vídeo e milhares de visualizações, a Igreja Adventista se posicionou nas redes sociais da corretora. Em comentário, a congregação disse lamentar o ocorrido e afirmou que os materiais foram retirados de circulação para revisão dos autores.
Reportagem originalmente publicada em campograndenews.com.br