“Nos meus chats de pais do colégio no WhatsApp, ainda não vi até agora dois pais [homens] comentarem entre si: ‘Vem cá, vai ter casals [curso de férias, em catalão]? Quem vai se matricular?’ Que coisa, né, porque entre as mães não se fala de outra coisa.” Paula é autônoma, tem duas filhas menores de 10 anos e já trabalhava em casa antes da pandemia. Seu marido, assalariado, passou ao teletrabalho desde março, e juntos procuram dividir “meio a meio” a educação e os cuidados com as meninas, assim como as tarefas de manutenção do lar. Ela, entretanto, se sente oprimida por duzentas outras tarefas mentais de controle e administração de seu núcleo familiar. Dinâmicas que já vinham herdadas de muito antes do confinamento. “Aqui tentamos dividir [as tarefas], mas sempre noto a carga mental. Tenho que lembrar o que é preciso fazer para a aula, as senhas do Zoom do teatro de uma das minhas filhas, marcar hora para a revisão no posto de saúde, ligar para o contador etc.. Isto é muito difícil de mudar”, esclarece.
Cristina é assalariada, trabalha no setor da comunicação e também teletrabalha desde março com seu marido e seu bebê de um ano e três meses. Na maioria das noites, depois de pô-la para dormir, decide terminar as tarefas profissionais pendentes. “Eu me pego trabalhando de madrugada porque não dou conta de tudo. De dia minha filha é muito exigente e exige cuidados. Meu marido e eu tentamos nos alternar, mas percebi que de noite encontro mais calma para acabar tranquila o que ficou pendente”, conta. Seu horário noturno não a exime da reunião telemática diária de sua empresa às nove da manhã. Se somarmos horas, quanto dura a jornada profissional de Cristina?
O confinamento e a nova normalidade deixam as mulheres esgotadas, estressadas e dedicando mais horas à manutenção e cuidados que seus pares masculinos. “Os dados mostram que as mulheres estão arcando com a maior parte da carga das tarefas domésticas durante o confinamento”, diz Libertad González, professora de Economia e Empresa da Universidade Pompeu Fabra (UPF), de Barcelona, e membro do Centro de Estudos de Gênero (CEDG). González e Lídia Farré, professora da Econometria, Estatística e Economia Aplicada da Universidade de Barcelona (UB), coordenaram um estudo dividido em duas rodadas que deve provar que o confinamento e a dita nova normalidade não igualaram a balança no lar.
Limpam, cuidam, educam… e se estressam mais
A primeira fase do estudo, intitulado Quem se encarrega das tarefas domésticas no lar?, transcorreu em abril, quando foi feita uma pesquisa online com 7.091 pessoas, membros de famílias com filhos, principalmente na Catalunha. Em maio, com o afrouxamento da quarentena, passou-se à segunda etapa da pesquisa, com apoio da empresa de opinião pública Ipsos e das pesquisadoras Yarine Fawaz e Jennifer Graves, com observações sobre outras 5.000 pessoas, distribuídas por todas as regiões espanholas. “Apesar de um pequeno aumento na participação dos homens, elas continuam sendo as principais responsáveis pela limpeza da casa, comida, roupa lavada e cuidado com os filhos”, diz González. “Dado o importante volume de trabalho gerado pelo fechamento dos centros educacionais, e que muitas mulheres têm empregos que permitem o teletrabalho, o aumento da carga foi muito importante”, observa, ao comentar as consequências mais chamativas de seu estudo. Com cinco blocos sobre as tarefas domésticas (limpeza, compras, roupa, comida e cuidado com os filhos, tanto lazer como educação), a investigação conclui que a única atividade em que o homem é o principal responsável foi fazer as compras. “Antes do confinamento, as compras já eram a atividade mais dividida entre homens e mulheres, embora elas fossem as responsáveis na maioria dos lares. Entretanto, durante o confinamento esta é a única atividade que passa a ser desempenhada majoritariamente pelos homens. Observamos isto claramente em nossas duas amostras”, diz a pesquisadora. Embora a participação masculina suba ligeiramente em todas as tarefas, as espanholas continuam sendo responsáveis por lavar a roupa (39 pontos mais que os homens), limpar a casa (29 pontos a mais) e cuidar da educação das crianças (24 pontos a mais).
Tomar conta também causa mais ansiedade. O projeto Conciliação familiar em tempo de confinamento pela covid-19 (Family reconciliation in times of confinement, na denominação em inglês), coordenado por Cristina Benlloch e Empar Aguado, professoras do Departamento de Sociologia e Antropologia Social da Universidade de Valência, e pela cientista política e jurista Anna Aguado, indica que as mulheres com filhos menores que trabalham à distância sofrem a maior parte do estresse do confinamento. O estudo, baseado em pesquisa telefônicas e online com mulheres, foi publicado inicialmente no site The Conversation e revela que as mães “sentem que estão o dia todo trabalhando”, que o acompanhamento escolar dos filhos costuma ficar a cargo delas ―o que virou “um elemento de ansiedade e estresse agregado”― e que uma nova estratégia frente a esta situação está sendo “o recurso de teletrabalhar durante a madrugada, seja adiando a hora de ir para cama ou levantando antes que o resto da família”.
O falso efeito do cesto de roupa suja
As espanholas não estão sozinhas. Estudos semelhantes sobre a distribuição de tarefas domésticas e do homeschooling desenvolvidos nos EUA e Argentina durante o confinamento indicam resultados em sintonia com os vistos na Espanha: os homens participam mais por estarem mais conscientes que nunca do trabalho que dá administrar uma casa, mas o peso e o estresse continuam recaindo de forma mais acusada sobre as mulheres. Simbolicamente deveria ser o efeito do cesto cheio, algo que Brigid Schulte, autora de Overwhelmed (2014) e diretora do programa sobre trabalho, igualdade de gênero e política social no think thank New America, Better Life Lab, explicou recentemente ao jornalista Terry Gross no podcast Fresh Air. Schulte está investigando as “grotescas” desigualdades de gênero durante o confinamento nos EUA, através de entrevistas telefônicas e pesquisas do seu think thank. Parte do trabalho da sua equipe se centrou em entrevistar maridos e parceiros de mulheres que trabalham no setor sanitário e que tiveram que se isolar dos demais familiares para evitar possíveis contágios. Homens que assumiram totalmente os cuidados da casa pela reviravolta dos acontecimentos. Entre os detalhes mais íntimos, por assim dizer, um elemento aparecia de forma recorrente nas conversas com estes homens: o efeito do cesto de roupa suja e como ela se tornara significativa para os homens que assumiram as tarefas domésticas. “Muitos me disseram entre risos que antes achavam que a roupa dobrada ia parar magicamente em suas gavetas, nem pensavam nesse trabalho invisibilizado, não contavam com isso, e que agora ao guardá-la estão conscientes de que suas mulheres eram as que sempre faziam isso e que, também, o cesto se enche o tempo todo”.
Esse despertar masculino ajudará a mudar os padrões da divisão de trabalho nos lares? O gesto de lavar e guardar a roupa será capaz de eliminar as desigualdades? Não, se as políticas sociais públicas não intervierem para conciliar o teletrabalho com a conciliação entre família e trabalho. Como diz a pesquisadora Caroline Criado Pérez: “Existe uma tautologia sobre a mulher trabalhadora: não existe a mulher que não trabalha, só mulheres não remuneradas”. O trabalho dentro do lar permanece, de forma interessada, invisibilizado nos planos institucionais, sendo considerado um espaço de lazer pessoal, porque os cuidados são computados como uma questão de afeto (cuido de você porque te amo) e, assim, distanciados do imaginário do intercâmbio mercantil. Uma estratégia que serviu para cimentar os excessos do sistema capitalista. Em janeiro deste ano, um relatório da Oxfam confirmou isso: se pagássemos o trabalho de cuidados que mulheres e meninas realizam gratuitamente em todo o planeta, suporia o triplo de todo o gasto mundial em tecnologia (12,5 bilhões de horas diárias, o equivalente a 10,8 trilhões de dólares anuais).
Num momento em que sisudas análises (masculinas) se perguntam se agora, com esse negócio do coronavírus, poderemos resolver de uma vez por todas o dilema da eficiência do teletrabalho versus a presencialidade no escritório, irrita, mas não surpreende, comprovar como a conjugação das dinâmicas da conciliação com nossa produtividade e flexibilidade trabalhistas permanecem excluídas da equação desse pensamento teórico. Tampouco surpreende, precisamente, que sejam líderes com perspectiva de gênero, como Jacinda Ardern, que estejam propondo isso na hora de conjugar o futuro que nos aguarda, agora que pusemos o lar no centro de tudo. Porque nem tudo se resolverá, milagrosamente, cuidando da roupa suja.
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