por Glauce Souza Santos
Rememorar e refletir a respeito dos processos de construções da identidade nacional brasileira, baseados na violação colonial perpetrada pelos senhores brancos contra as mulheres negras e indígenas, pode nos ajudar a entender as bases dos terríveis casos de violência contra a mulher, ainda tão recorrentes em nosso país. Sueli Carneiro ao analisar a situação da mulher negra na América Latina afirma que essa violação e miscigenação resultante desse processo está na origem de todas as construções de nossa identidade nacional, estruturando o mito da democracia racial latino-americana, que no Brasil chegou até as últimas consequências.
No Brasil do século XVI estuprava-se para colonizar. Estuprava-se para fazer crescer o país. Estuprava-se para solidificar as hierarquias de gênero e raça. Em pleno século XXI essa cultura do estupro ainda é perpetuada. Colhemos os frutos de uma colonização violenta e, infelizmente, somos uma nação machista e perversa, principalmente com o corpo das mulheres negras que representa 51% dos casos de violência sexual no Brasil.
O papel de romancear os inúmeros casos de exploração sexual das mulheres negras ficou a cargo das narrativas literárias e históricas. Essas narrativas encontraram terreno fértil no imaginário coletivo e contribuíram de forma significativa para a naturalização do estupro em nosso cotidiano. Quem não ouviu falar na índia capturada no mato para se casar com um homem branco e servi-lo? O que dizer dos inúmeros casos de senhores de engenhos que estupravam suas escravas? E aquele padrasto, pai ou tio que abusou da menina de apenas quatro anos de idade e ninguém denunciou? Não dá para esquecer, por exemplo, o poema de Jorge de Lima que, na voz da sinhazinha, culpabiliza a Negra Fulô por ter sido estuprada por seu senhor no momento do açoite. Até hoje a voz da sinhazinha sentencia: “Também… com aquela roupa curta, estava pedindo pra ser estuprada, não é?” “Não era para ela estar naquele lugar!”
Todos esses atos de violência sexual sedimentaram e sedimentam as hierarquias de gênero e raça no Brasil. Rosiska Darcy de Oliveira aponta que é necessário saber de onde vem tanto ódio contra as mulheres e estancá-lo. Mas como fazer isso em um país em que nossos políticos se recusam desconstruir tais hierarquias, rejeitando, por exemplo, com veemência, a proposta de discussão das questões de gêneros indicada pelo Plano Nacional de Educação?
Diante de um tempo desfavorável politicamente, cabe a nós: educadores (as), líderes religiosos (as), pais, mães e demais membros da sociedade civil, comprometidos com uma mudança social e radical no país, trabalharmos pelas vias alternativas: insistindo na problematização das noções culturais sobre o papel de homens e mulheres na sociedade, levando em consideração as questões raciais. Assim, estaremos contribuindo com a desconstrução de uma lógica masculina, branca e perversa que sexualiza, exacerbadamente, a mulher negra; legitima o estupro; culpabiliza, constantemente, a vítima; e dita as regras para ser e estar no mundo.