Violência doméstica: o que fazer para romper o ciclo

 

por *Luma Santana de Souza Dórea

 

Lei Maria da Penha é avançada e obriga autoridades policial, judicial e o Poder Público a proteger a mulher física, moral e materialmente contra abusos, agressões e intimidações

Registrando quatro mulheres assasinadas todos os dias, o Brasil já ocupava desde 2018 a horrenda quinta posição mundial em feminicídio – uma catástrofe que aprendemos a banalizar e que apenas piorou durante a pandemia do Coronavirus: segundo o Instituto Datafolha e com base nos dados fornecidos por Secretarias de Segurança Pública de todo o país, 1.338 mulheres foram assasinados por seus maridos, namorados ou pretendentes, um crescimento de 2% no número de casos desse tipo de violência no período de enfrentamento da Covid-19.

Se tomarmos emprestada a definição da acadêmica, escritora, pesquisadora, antropóloga e ativista feminista mexicana Marcela Lagarde, poderíamos dizer que feminicídio é o assassinato de mulheres perpetrado por homens pelo simples fato de serem mulheres e com base na discriminação de gênero.

Mas a nossa lei Maria da Penha, de 2006, é tão avançada que foi além e ofereceu um upgrade ao conceito de Lagarde ao considerar como feminicídio também o assassinato da mulher por sua companheira do mesmo sexo ou da pessoa transgênero que tenha identidade de gênero feminina.

A lei Maria da Penha (11.340/2006) foi fruto de vinte anos de luta da farmacêutica bioquímicacearense Maria da Penha Maia Fernandes, que ficou paraplégica depois de sofrer duas tentativas de homicídio e muita tortura física e psicológica perpetradas pelo marido. É uma lei avançada que obriga o Estado brasileiro a oferecer proteção policial, judicial, material e psicológica a mulheres vítimas de violência doméstica.

Por quê, então, quinze anos depois de promulgada a lei o “respeita as mina” ainda é um grito desesperado no Brasil?

A persistência da cultura machista e a recente leniência governamental para com o uso de armas de fogo em nada ajudam – mas, por outro lado, uma ação importante para prevenir os crimes continua sendo deixada de lado pelas mulheres em grande e perigoso volume: denunciar os abusadores às autoridades antes que seja tarde demais.

A lei oferece mecanismos de proteção e acolhimento que só podem ser acionados se a mulher, pessoas próximas a ela ou mesmo testemunhas anônimas façam sua parte e informem às instituições responsáveis que uma vida humana está em situação de perigo, abuso ou risco iminente de violência.

Como e onde denunciar?

1)      Se você estiver sendo testemunha de uma violência que está acontecendo, seja porque você está vendo a agressão ou está escutando os gritos da vítima, não hesite: ligue 190 e chame a Polícia Militar. O agressor poderá até ser preso em flagrante e sua iniciativa tem grandes chances de incentivar a mulher a tomar uma atitude para romper com a violência uma vez que ela se sentirá apoiada.

2)      Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180 é o canal de notificações de violência contra a mulher mantido pelo Governo Federal. Basta digitar 180 para chamar  de qualquer telefone móvel ou fixo. Além de receber denúncias de violações contra as mulheres, a central encaminha o conteúdo dos relatos aos órgãos competentes (Ministério Público, Conselhos Tutelares) e monitora o desdobramento das apurações. A central funciona 24 horas por dia, sete dias por semana, inclusive aos feriados, sábados e domingos

3)      Notificações online podem ser feitas pelo aplicativo Direitos Humanos Brasil (disponível gratuitamente para Androide e iOS) e na página da Ouvidoria Nacional de Diretos Humanos (ONDH) do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), que oferece as opções de encaminhamento da notificação por Whatsapp, Telegram, Videochamada em Libras, entre outras.

4)       É comparecendo às Delegacias Especiais de Atendimento à Mulher para denunciar o abusador, no entanto, que a mulher vítima de violência física, sexual, patrimonial, moral ou psicológica encontra suas melhores chances de romper o ciclo da violência no qual pode estar enredada.

Isso porque esses espaços são as unidades especializadas da Polícia Civil responsáveis por medidas de prevenção, proteção e investigação dos crimes de violência doméstica e violência sexual contra as mulheres, entre outros, e vão registrar Boletim de Ocorrência, solicitar ao Poder Judiciário as medidas protetivas de urgência e proceder à investigação dos crimes.

·         O Instituto AzMina disponibiliza um mapa dessas delegacias em todo o país. Basta vc digitar o nome de sua cidade no campo de busca para encontrar a mais próxima de você. Mas é importante você saber que, se sua cidade não possui uma dessas unidades especializadas, qualquer delegacia tem que desempenhar o papel. É lei, ok?

·           Na delegacia de Polícia, o delegado ou policial civil de plantão terá que:

   Registrar seu relato na forma de um boletim de ocorrência (BO). Por isso, e para respaldar medidas judiciais futuras, é importante que você descreva em detalhes o tipo de agressão sofrida, as ameaças, a eventual existência ou uso de armas brancas (como faca) ou armas de fogo, se a violência também atinge os filhos. Se alguém já testemunhou as agressões, indique.

   Encaminhar a mulher para exame de corpo de delito no Instituto Médico Legal caso ela apresente qualquer lesão, ferimento ou hematoma resultante da agressão. E, de acordo com o artigo terceiro parágrafo terceiro da Lei 14.022/2020, em casos de violência contra a mulher ela terá prioridade para realização desse exame nos IML’s.

   Iniciar o inquérito policial para apurar os fatos relatados, ouvir testemunhas e reunir provas. O resultado da investigação será encaminhado ao Ministério Público. Se a mulher pedir uma medida protetiva na delegacia, a polícia deve encaminhar ao juiz em até 48 horas, e o juiz também tem o prazo de até 48 horas para decidir se irá aplicar medidas protetivas de urgência (como as de afastamento da mulher do agressor, suspensão ou restrição do porte de arma, prender preventivamente o agressor, entre outras).

   A Lei Maria da Penha também determina, em seu artigo 11, que a autoridade policial tem que fornecer transporte para a ofendida e seus dependentes para abrigo ou local seguro, quando houver risco de vida – e, quando necessário, acompanhá-la para assegurar a retirada de seus pertences do local da ocorrência ou do domicílio familiar.

5)      O que é que um Juiz ou Juíza pode determinar para proteger a mulher vítima de violência doméstica?

·         O artigo 9º da Lei Maria da Penha estabelece, por exemplo, que para preservar a integridade física e psicológica da mulher, a autoridade judiciária poderá garantir à mulher servidora pública acesso prioritário à remoção – ou seja, ela poderá ser designada para trabalhar em um local ou até mesmo cidade diferente daquela em que está.

·         Se for empregada de empresa privada, o juiz pode determinar que seja mantido seu vínculo trabalhista por até seis meses caso a mulher precise se afastar.

·         A autoridade do Poder Judiciário deve ainda encaminhar a vítima à assistência judiciária, inclusive para eventual ajuizamento da ação de separação judicial, de divórcio, de anulação de casamento ou de dissolução de união estável perante o juízo competente.

·         O artigo 22 da lei permite ao juiz restringir ou suspender visitas do agressor aos filhos menores (ouvida a equipe de atendimento multidisciplinar ou serviço similar), obrigá-lo a pagar pensão alimentícia, comparecer a programas de recuperação e reeducação e frequentar acompanhamento psicossocial por meio de atendimento individual e/ou em grupo de apoio.

·         Já o artigo 24 da Lei Maria da Penha estabelece que juízes atuando em denúncias de violência contra mulheres podem tomar medidas voltadas à proteção patrimonial dos bens da sociedade conjugal ou daqueles de propriedade particular da mulher:

   mandando restituir os bens indevidamente subtraídos pelo agressor;

   proibindo-o temporariamente de celebrar atos e contratos de compra, venda e locação de propriedade em comum;

   suspender procurações conferidas pela muulher ao agressor,;

   pagar caução provisória, mediante depósito judicial, por perdas e danos materiais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a vítima.

6)      Caso a mulher vítima de violência doméstica deseje buscar assistência de advogado/a, ela deve, em primeiro lugar saber que:

 

I.           Um (a) advogado (a) não pode depor em seu lugar perante uma autoridade policial – mas poderá estar ao seu lado prestando assistência e apoio durante seu depoimento;

II.        Advogados também são fiscais da lei, e irão garantir que todo o seu depoimento irá constar no Boletim de Ocorrência, e que todos os fatos narrados pela vítima serão registrados tal e como como foram relatados;

III.     Na Delegacia, a vítima, acompanhada de seu/sua advogado/a deverá contar em detalhes como a agressão aconteceu – explicando, inclusive, se outras agressões já aconteceram anteriormente e qual a relação entre você e o agressor;

IV.      A vítima também poderá apresentar provas da violência sofrida, como fotos, laudos médicos, testemunhas, conversas em redes sociais, mensagens recebidas no celular e depoimento de testemunhas (lembre-se que a testemunha não precisa necessariamente ter presenciado os fatos, mas tem que ter conhecimento do que aconteceu);

V.        A representação é a autorização da vítima para dar início à investigação e ao processo criminal, e deve ser feita em até seis meses, contados da data da prática da violência. Ela não é exigida para todos os crimes, mas para outros, como o crime de ameaça, somente haverá processo criminal e eventual punição se a vítima declarar na Delegacia que quer representar contra o agressor.

 

* Bacharel em Humanidades, Advogada Especialista em Direito Público, Doutoranda em Direito Ambiental.

Julgamento expõe décadas de abusos sexuais perpetrados por artista pop

Por Luma Santana de Souza Dorea

 

“I believe I can fly
I believe I can touch the sky…”

 

Você  certamente já ouviu essa música composta em 1996, nas rádios da época ou mesmo nos dias de hoje, pois é uma canção que rende memes na Internet, em filmes e em programas de TV. Além de ter sido parte da trilha sonora do filme Space Jam, por meio do qual o hit emplacou e consagrou-se.

I believe I can fly (“Eu acredito que posso voar”) é o single de R. Kelly, que veio do gospel americano e é considerado o cantor mais bem sucedido do ano de 2017, com diversos hits e mais de 70 milhões de discos vendidos.

Ele teve sucesso não só na carreira solo mas também como produtor e compositor de outros artistas, como Janet Jackson, Toni Braxton e Britney Spears.

Mas ao contrário do filme Space Jam – uma animação que narra o encontro dos divertidíssimos personagens do desenho Looney Tunes com o astro do basquete Michael Jordan em um mundo paralelo, numa história de superação e lealdade regada a muito humor -, a história do ídolo por trás da música vencedora de três Grammys é sombria e criminosa.

O cantor R. Kelly foi considerado culpado por tráfico sexual de mulheres e de menores de idade após julgamento em um tribunal federal de Nova York, nos Estados Unidos, na segunda-feira 27 de setembro.

A condenação é uma vitória do movimento contra o assédio sexual na indústria do entretenimento e confirma o declínio da carreira e da imagem pública de um dos artistas que mais dominou as paradas dos EUA nas últimas décadas.

O público americano assistiu, estarrecido, a divulgação de que procuradores federais acusavam o cantor de comandar um séquito de empresários, seguranças e outros, que recrutavam mulheres e meninas para o artista fazer sexo e abusar, além de produzir pornografia, inclusive infantil.

O primeiro caso de conhecimento notório foi a acusação, pela qual foi também condenado, de que Kelly subornou um funcionário do governo para obter permissão de se casar com a cantora Aaliyah (1979-2001) em 1994, quando ela tinha apenas 15 anos.

Ou seja, pelo que se sabe da investigação criminal, antes mesmo de alcançar o topo do sucesso, em 1996, o artista já vinha praticando atos considerados como crimes sexuais.

Vale ressaltar que adolescentes  de 15 anos não podem obter autorização judicial para se casar nem mesmo no Brasil. A idade núbil no direito brasileiro é de 16 anos, conforme o artigo 1.517 do Código Civil. E a prática de relações sexuais com menores de 14 anos é considerada estupro de vulnerável (art. 217-A do Código penal), independente de consentimento da vítima.

Mas não foi só esse casamento ilegal e fraudulento que foi alvo de investigação. Ele já tinha evitado uma condenação em 2008, quando foi considerado inocente de 14 crimes em julgamento sobre pornografia infantil, quando negou todas as acusações.

Desta vez ele não teve a mesma “sorte”, pois ao longo das cerca de seis semanas de julgamento, promotores descreveram com detalhes uma organização de tortura e abuso, com provas dos últimos anos e de casos que remontam a 1991.

A acusação chamou quase 50 pessoas, que testemunharam que a faceta pública do cantor escondia um predador calculista e controlador. Entre as testemunhas estavam nove mulheres e dois homens que acusaram Kelly de abuso ou outro tipo de má conduta, e oito funcionários do cantor.

Nesse julgamento Robert Sylvester Kelly foi condenado por extorsão e tráfico sexual de mulheres e menores de idade após a avaliação realizada por um júri federal em Brooklyn, Nova York, EUA. A informação foi confirmada pelo gabinete oficial em publicação no Twitter.

“R. Kelly foi condenado por extorsão de acordo com um júri federal no Brooklyn”, informou a postagem na rede social.

Entre as nove acusações avaliadas pelo júri formado por 12 pessoas, R. Kelly também foi considerado culpado pela exploração sexual de crianças, sequestro, abusos sexuais e suborno. O artista violou oito normas definidas pela Lei Mann, que define punições contra o tráfico sexual.

Conforme a previsão do tempo de condenação pelos crimes previstos, estima-se que R. Kelly pode permanecer preso por décadas. Sua audiência de sentença está marcada para 4 de maio de 2022.

 

Meninas negras importam

Ativistas do movimento #MeToo comemoraram a vitória judicial.

Elas afirmaram que é especialmente importante pois finalmente o #MeToo retorna sua atenção para as mulheres e meninas negras —afinal, o movimento foi fundado por uma mulher negra, Tarana Burke, para ajudar meninas afro-americanas como aquela de 13 anos, do Alabama, que lhe revelou, em 1997, ter sido abusada sexualmente pelo namorado da mãe.

As ativistas afirmam que hoje, quando o #MeToo continua a dominar as manchetes, as negras estão invisíveis no movimento. Em vez disso, a imprensa prefere se concentrar nas atrizes brancas de Hollywood que vieram a público com seus relatos de violência e assédio sistêmicos.

Em 2019 o canal Lifetime já havia divulgado o documentário Surviving R. Kelly (“Sobrevivendo a R. Kelly”). Em seis devastadores episódios, o filme percorreu os perturbadores relatos de abuso sexual, físico e de pedofilia do astro da música R&B pelo olhar de algumas de suas vítimas, incluindo sua ex-mulher Andrea Kelly, todas auto-identificadas como sobreviventes.

A condenação, que chega atrasada em mais de um ano por causa da pandemia, é considerada um marco para o movimento #MeToo por ser o primeiro julgamento importante por abuso sexual no qual a maioria das acusadoras são mulheres negras.

Com a condenação do ex-astro, encerra-se o ciclo de abusos e a saga por justiça de suas vítimas. Mas nem de longe está encerrada a luta contra a violência sexual que vitima mulheres e meninas em todo o planeta.

 

* Bacharel em Humanidades, Advogada Especialista em Direito Público
OAB/BA 51.834

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